Excelso lótus de névoas diamantinas, irresistivelmente perfumado pelo mais místico delirar da poesia, que um ósculo da Via Láctea, lascivamente eivado de feitiçaria pagã, semeara nos lábios constelados do Infinito, a Lua saciava a sede de Tot com o orvalho de magia cósmica que as pétalas de seu corpo astral rociava, docemente. Seu refulgente olhar de feitiços de prata, supremo vidente dos enigmáticos oráculos do Universo, convidava-o a colher o fruto de imortalidade que abençoava o seu paraíso de luz imaculada, etereamente recamado de nascentes de sapiência ancestral, que se ofereciam, na magnificência de seu esplendor secular, a todos aqueles que se proponham a errar pela noite da vida, guiados pela estrela peregrina do conhecimento, eterna pedra filosofal, esculpida por Tot no apogeu da Criação, que convertia as trevas plúmbeas da ignorância, qual abismo onde somente o caos se manifestava, na luz transcendental, inebriante brisa de ouro, que acariciava o nascimento do jardim da humanidade, a fim de nele depositar a semente da sabedoria divina. Com efeito, Tot era proclamado, pelos fervorosos teólogos de Hermopólis, eterno imo do seu culto, como o lídimo Ourives da Criação, que, qual demiurgo universal incarnara uma íbis, a fim de chocar o ovo do mundo, tingindo de seguida na tela do universo vítreo, a excelso pintura da vida, numa obra de arte ímpar apenas concebida pela magnificência do som de sua voz.
Esta cosmogonia esculpe no ouro da sua identidade a personificação da inteligência divina, imprescindível naquele que não era senão uma deidade criadora e auto- criada, indigitando-o assim líder da Ogdóade de Hermopólis, um grupo de oito deuses, mais exactamente de quatro casais, sendo os homens facilmente reconhecidos através das suas cabeças de rã, em contraste com as suas esposas que ostentavam cabeças de serpente. Este grupo divino incarnava os pilares que haviam sustido a fundação do Universo: o casal original, isto é, aquele que Nun, personificação do oceano primordial, e Nunet, espaço celeste suspenso sob o abismo, constituíam; o casal Hehu e Hehet, ou seja, os espaços imensuráveis e impossíveis de destinguir subjacentes ao caos; o casal Keku e Keket, fruto das trevas e obscuridade; e por fim Ámon e Amaunet, símbolos do desconhecido, ou seja, dos enigmas que haviam nimbado o caos. A cidade edificada em honra destes oito deuses, actualmente denominada de El- Achmunein, era conhecida primitivamente por Khemenu, ou, na realidade, “A cidade dos oito deuses”. Todavia, a identificação vinculada entre Tot e Hermes, permitiu aos gregos apelidarem-na de Hermopólis, epíteto que se difundiu e estabeleceu através do tempo e das civilizações. Não obstante a noite pejada de obscuridade que vela o seu nascimento (determinadas fontes afirmam que Tot nasceu do crânio de Set, enquanto outras proclamam que o deus- íbis floresceu do coração do criador num momento de melancolia), indubitável é a sublimidade da chama de sabedoria divina, ateada pela suas invejáveis sagacidade e perícia, que dança na alma do arguto deus- íbis. Como soberano do fecundo reino do conhecimento, Tot sentiu ser vital a difusão dos insignes tesouros que este em sua imensidão guardava, pelo que abraçou a resolução de inventar um instrumento apto a garantir a transmissão perpétua das ciências por ele cultivadas: a escrita. Qual primeiro raio de luz bailando nos jardins dos céus, a escrita fende o luto da noite, a fim de passear pelas fragrantes rosas dos hieróglifos, de brincar na árvore da comunicação, que o Verbo e a Palavra, doce frutos dos deuses, coroavam num halo de fastígio.
A poesia, primeira manhã do mundo das almas, é cálice de Sol vertido pela taça de sua sapiência. Os livros, alimento do intelecto, seu testemunho. Em harmonia com esta ideologia, os Egípcios aludiam aos seus hieróglifos como medu- netjer, ou seja, “palavras do deus”, numa flagrante oblação ao deus- íbis. Enquanto fautor da escrita, perpétua arauta do pensamento, Tot conquistou o epíteto de neb medu- netjer, em português “O Soberano das Palavras Mágicas”. Ao integrar a elite do panteão egípcio, Tot converte-se em depositário das confidências do excelso soberano dos deuses, equivalente ao faraó na terra, garantindo assim a denominação de “Ré disse; Tot escreveu”. Não constitui, deste modo, qualquer surpresa constatar que, num ápice, Tot alcançou a preeminente posição de guardião dos arquivos divinos, emissário e escriba dos deuses. No seio da comunidade celestial, é o deus- íbis quem abraça a incumbência de permitir que a praia de luz, formada pelos cristais de luz das etéreas almas dos deuses egípcios, seja docemente banhada pelo mar da harmonia cósmica. Por conseguinte, era ele que, através da análise das inúmeras regras ditadas pelo criador na fundação do Universo, procura solucionar todas as querelas e desaires semeados na sociedade dos céus. Desta forma, buscando a aplicação das leis estabelecidas aquando da excelsa matriz da vida, os deuses reuniam-se em assembleias, marcando o início de morosos julgamentos que, com frequência, se prolongavam durante alguns anos. Escutadas e interpretadas todas as vozes envolvidas nos debates e recontros, Tot evoca a sua sapiência e sela o julgamento com uma decisão apta a implantar a paz, onde outrora o caos reinara. Resolução alguma deverá sem perpetrada sem o consentimento do escriba divino.
A polivalência intelectual de Tot faculta-lhe a prerrogativa de invadir e conquistar todo o reino das ciências, pelo que ele é igualmente o deus das matemáticas, o calculador primordial e imbatível. Dominando a criatividade e a razão, o deus- íbis ousou estipular sozinho os limites dos nomos e as fronteiras das terras, concebendo assim “o ordenamento do País Duplo (Egipto) e a organização das províncias; e não hesitou em erguer todos os santuários dos deuses, dado possuir o monopólio do traçado e das plantas. Além de oferecer-lhe o título de “Arquitecto Divino”, esta liberdade tornou-o também patrono dos escribas, dos médicos, dos mágicos e dos arquitectos. Vestido pelo sumptuoso cetim de prata que o luar tece na magia do Infinito, Tot preside igualmente ao festim de feitiços e sonhos, oferecido pela noite no seu excelso palácio de abismos constelados. Incarnação da Lua, eterna maga de fantasias pagãs, Tot fendia a mortalha de trevas e pez que sufocava a essência da noite com a luz imaculada de sua adaga de feitiçaria divina. No cosmos do tempo, a intemporal estrela de um mito imortaliza com seu fulgir ofuscante o incidente que inspirou ao deus- íbis a poesia da Lua. Segundo este, Ré, cujo coração exânime, dilacerado pelos infindáveis conflitos da humanidade, naufragava nos mares da exaustão do sentir e do querer, cede à tentação de abdicar parcialmente da sua existência na terra, em prole de uma vida serena nas alturas celestes. O seu auto- exílio lança o tempo no abismo do caos, visto que doravante o astro- rei somente abençoaria a os seus súbditos terrenos durante o dia, abandonando-os, por conseguinte, às trevas e ao caos, no decorrer da sua viagem pelo mundo subterrâneo. Receando pela sorte da alma humana, Ré evoca então Tot, a fim de o indigitar seu substituto. O poderoso regente dos céus proclamou então: “ Farei com que rodeies os dois céus com tua beleza e claridade. E assim nascerá a Lua”. O seu passeio compassado pelos vales dos céus privilegiou-o com outro dos céus díspares epítetos: “Touro entre as estrelas”. Esta vertente de substituto do Sol durante a noite justificou igualmente que, durante a Época Baixa, o apelidassem de “Áton de prata”.
Tornado Senhor do Tempo e das Estrelas, Tot ou “Governante dos anos” sonhara igualmente o calendário, permitindo uma distinção entre os dias, os meses, as estações e os anos. De facto, o deus íbis cometeu a audácia de reinventar o conceito de tempo, a fim de prestar auxílio à deusa Nut, incarnação do céu, que, seu o consentimento de Ré se havia unido a Geb, personificação da terra, em lustrais núpcias divinas, fomentando assim a ira do regente supremo dos deuses, que, irado, coagiu Chu a apartar os dois amantes clandestinos, num ímpio desaire: Nut, grávida de cinco meses, jamais poderia dar à luz no espaço de tempo compreendido pelo calendário oficial. Por conseguinte, Tot, saboreando o néctar de criatividade que resvalava do fruto de sua extasiante inteligência, propôs-se a jogar aos dados com a lua, na ânsia de obter cinco dias suplementares, isto é, a septuagésima segunda parte da sua luz, que acolhessem o nascimento dos cinco filhos de Nut (Osíris, Set, Ísis, Néftis, e Horús, o Antigo). Outra flor de míticos encantamentos, vogando sem rumo na corrente do translúcido Nilo da mitologia egípcia, insinua-se em nossos sentidos, através do seu perfume de quimeras ancestrais, convidando-nos a presenciar um dos mais ferozes recontros que opôs Hórus a seu tio Set e que culminou com o dilacerar do olho esquerdo do deus falcão (personificação da Lua, em contraste com o olho direito que simbolizava o Sol). Prontamente, Tot ofereceu-lhe os seus préstimos, restaurando a visão a Hórus, ao substituir o olho dilacerado pelo amuleto uadjet, o que restituiu a harmonia ao cosmos e a magia ao deus- falcão.
Coroado pela sua beatífica sabedoria regente do generoso éden do conhecimento, Tot esculpira o seu trono na prata da Lua e o seu ceptro na jóia rara da magia suprema. Efectivamente, encontramos em Hermopólis, sua morada eterna, um tempo luxuriante, cujas criptas acolhiam papiros místicos, redigidos por aquele que constituíra o primeiro dos mágicos, venerado e imitado por todos os seus devotos discípulos. Estes, na ânsia de desbravarem a floresta proibida do conhecimento, em cujo coração pulsava a essência da magia, elevavam preces a Ré, crentes de que este conduziria Tot até eles: “Ó velho que rejuvenesceu no seu tempo, velho que se tornou criança, possas tu fazer com que Tot venha até mim, respondendo ao meu chamado”. A mitologia egípcia atribui-lhe a autoria das díspares fórmulas mágicas e textos simbólicos que o morto, ou melhor, o maé- kheru (justificado) ou maet- kheru (justificada) pronunciavam ao franquear as portas do Além e, mais exactamente, no decorrer do julgamento celestial, presidido por Osíris. Suspiros do passado confiam-nos que Tot legou também à eternidade um livro de magia e quarenta e dois volumes, que testemunhavam, sustinham e renovavam toda a magia do cosmos. Por conseguinte, prestar culto ao deus- íbis revelava-se incontornável e, na realidade, capital, para qualquer sábio. De facto, todos os escribas que ornavam de sabedoria a alma do Egipto, desde os mais humildes aprendizes, ou em egípcio, sebati, ao mais proeminente mestre (sebá) ritualizavam a sua devoção, derramando algumas gotas de tinta numa notória oblação a Tot.
Por último, Tot tece, juntamente com inúmeras outras deidades, o destino dos inumados no Além, exercendo a função de escriba divino e arauto dos deuses fúnebres. Desta forma, é ele quem introduz o defunto no recinto celestial onde será julgado, para, após a pesagem do coração deste, registar, nas tabuinhas sagradas, o veredicto proferido por Maet. Os sonhos de amor que a existência semeava no coração de Tot eram cultivados e ditados pela noite da geografia e pelas veleidades e metamorfoses da alma humana, pois em Hermopólis, o deus- íbis era proclamado esposo da sagaz Sechat, deusa dos anais e da história, que lhe ofereceu um filho de nome Hornub, enquanto que em Heliópolis Nehemetauai, isto é, “aquela que erradica o mal” era tomada por sua mulher, concebendo com ele Hornefer. Alguns devaneios da mitologia revelam que Tot desposou igualmente Maet, a etérea filha de Ré, versão suplantada por aquela que consignava a união de Tot e Tefnut, resultante da fuga do Olho de Ré para a Núbia, sob a forma da graciosa deusa. Incumbido de a restituir ao seu legítimo proprietário, o deus– íbis não terá resistido aos seus encantos, desposando-a no seu retorno ao Egipto. Porém, enquanto entidade intelectualmente superior, abençoada pela consciência da incomensurabilidade da sua sagacidade, Tot bebe da fonte da pretensão, tornando-se terrivelmente enfadonho, displicente e com uma hedionda propensão a exibir a sua inteligência através de uma retórica prolixa, escrava de uma abominável e excessiva facúndia, tal como sugere um determinado episódio do mito osírico: Na ânsia de escapar à pravidade do deus Seth, Ísis, sustendo nos braços seu filho Hórus, toma os pântanos de Chemnis, como seu refúgio de eleição. Coagida pela escassez de alimentos, a deusa abandona todas as manhãs o seu filho, a fim de assegurar a subsistência de ambos. Contudo, uma noite, ao retornar de mais uma extenuante peregrinação em busca de géneros alimentares, Ísis deparou-se com Hórus inconsciente e, desesperada, evocou Rá, que, por seu turno, não hesitou em solicitar a Tot que restituísse a saúde à criança. Após examinar cuidadosamente o enfermo, o eloquente deus- íbis lançou-se em abstractas cogitações, extravasadas sob a forma de praguejos pontuais e monólogos facundos e muito pouco apropriados. Exasperada com a sua inércia, Ísis arrebata Tot aos seus devaneios, admoestando-o severamente por “sábio ser o seu coração, mas terrivelmente demoradas as suas resoluções”.
Detalhes e vocabulário egípcio:
Tot era designado, em egípcio, por Djehuti, numa hipotética alusão a Djehut, a décima quinta província do Baixo Egipto, cuja denominação evocava o íbis, um dos seus animais sagrados.
Tal como já referido, o insigne mestre do Verbo era representado como um homem com cabeça de íbis, ornada pelo disco da Lua ou por uma coroa atef com o disco, uraeus e chifres. Em suas mãos, Tot sustém um cálamo e uma paleta de escriba. É sob esta forma que o deus- íbis regista os nomes dos faraós nas folhas da divina árvore persea, aquando da sua ascensão ao imponente trono do Egipto. Todavia, Tot surge-nos igualmente enquanto íbis ou, eventualmente, sob a forma de um babuíno.
Emissária das leis cósmicas, a magia, ciência divina personificada por Tot, é soberana do universo egípcio, instituindo um reinado de coesão espiritual que encontra na “mulher sábia” uma das suas maiores depositárias,. Tal como nos sugerem os arquivos de Set Maet, “Lugar de Verdade”, povoação alguma, independentemente do seu tamanho, se privava da protecção destas grandes magas. Habilitada a instaurar a harmonia onde o caos reinava, a exonerar as forças malignas e a preconizar o futuro, esta vidente surge-nos com frequência ajoelhada defronte de Tot, que sem hesitar a convidava a franquear a sua morada de sabedoria.
Sechat- Deusa da escrita e da medição, usualmente retractada como uma mulher envergando um vestido de pele de pantera. Em sua cabeça, insinuava-se um toucado com uma estrela de sete pontas e um arco. Juntamente com Tot, a sua versão masculina, inscrevia o nome dos faraós indigitados na sagrada árvore persea. A II Dinastia concedeu-lhe o privilégio de assistir o regente terreno no ritual de fundação de “esticar a corda”. A partir do Médio Império, a sua efígie é uma constante nos cenas dos templos dedicadas às campanhas militares, sendo representada a registar o número de cativos e despojos de guerra conquistados pelo Egipto. O Império Novo associou-a também ao festival jubilar Seb. A deusa Sechat consagrou-se igualmente regente da Casa da Vida, onde se compunham os rituais vitais para a conservação da harmonia cósmica e onde os faraós eram iniciados nos enigmas da sua função. Patrona das bibliotecas e protectora dos textos fundamentais, Sechat regista a oratória da vida com seu pincel divino, ditando nos contornos de suas palavras o destino dos faraós, tal como é demonstrado no templo de Séti I em Abidos: “A minha mão escreve o seu longo tempo de vida, a saber: do que sai da boca da Luz Divina (Ré), o meu pincel traça a eternidade; a minha tinta, o tempo; o meu tinteiro, as inúmeras festas de regeneração.”
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